Assim como muitas travestis,
Guilhermina queria que seu corpo plastificado fosse natural e perfeito. Para
alcançar o que conseguiu até então, ela deu duro na vida, mesmo às vezes
estando mole. Ainda adolescente, se mandou para Berlim ganhar uma grana. Seu
objetivo era ser operada. Órfã de mãe, abandonou seu pai, pedreiro batalhador
de uma empreiteira de Pato Branco, e foi à capital da Alemanha na década de
1990 arrancar de alguns velhos arianos o que não estava conseguindo obter em plagas Sudoestinas.
Depois de ficar muito tempo de joelhos, juntou o sagrado
dinheiro e comprou passagem só de ida. Mesmo não sabendo alemão, não hesitou: -
Se a Robertona se deu bem, e a minha bunda é maior, vou me dar bem também -
pensava.
Passados três anos pelas ruas de
Berlim, não só aprendeu a língua de Nietzsche como fez um belo pé de meia. Além
de faturar com programas, era acompanhante de executivos liberais e se
apresentava em uma casa noturna, dublando músicas da Ângela Maria. Chegou até a
participar de um programa de TV estilo Ratinho. Não ficou famosa, mas tirou um
bom proveito da exposição.
Certo dia, um telegrama ela
recebeu. “Caro Guilherme, seu pai sofreu um acidente e faleceu. Volte o mais rápido
possível para o Paraná”. O recado, curto e certeiro, escrito por seu tio,
Tobias, gerou uma confusão sentimental: um misto de alívio com dor, mas também
de consideração e amor, afinal, se tratava do progenitor. Lógico que ele nunca
aceitou a escolha do filho, chegando até refutar o seu caminho. Mesmo assim,
percebeu que sua jornada havia chegado ao fim. Era hora de encarar e enterrar o
seu pai descentemente.
Dois dias depois embarcou rumo ao
Brasil, carregando apenas uma mala com vestidos e sapatos. Algumas perucas também
vieram. O resto, ela deixou para a Robertona, amiga dos momentos difíceis, dos
alegres, das bebedeiras e confidente da cannabis russa que estava presente em
boas noites.
Sempre sensata, apesar de transar
muitas drogas, nunca se entregou a nenhuma. Seu lema era: “Eu, Christiane F.,
nunca! Eu quero o F só de fortuna”. É fato que não se tornou rica, mas
conseguiu um dinheiro que lhe traria conforto. O Fernando Henrique tinha
acabado de ganhar as eleições, depois de uma sacada genial com a alteração da
moeda. O pai do Real, naquela época, estava com um respaldo incrível junto à
população. Muito bem informada, Guilhermina viu ali uma oportunidade de, além
de se despedir do seu pai, tirar proveito da situação econômica. “Travesti sim.
Mas travesti burra jamais”, argumentava quando conversava com outras meninas
pelas ruas de Berlim.
Ao chegar a Pato Branco, tinha
que se dirigir ao IML para retirar o corpo do seu pai. O tio Tobias conseguiu
negociar o impossível que esperassem o retorno dela para enterrá-lo. Antes de
se dirigir ao local, Guilhermina foi até sua antiga casa. O velho quarto marrom estava
desbotado e as paredes, de madeira, apresentavam nos cantos uma deterioração. O fogão à lenha da Atlas ainda estava lá, bem como, o retrato de sua mãe na
moldura encardida colocada na sala. O bairro Menino Deus tinha mudado bastante.
A rua, antes de pedra irregular, tinha sido asfaltada.
A rua inteira acompanhou a sua chegada. As velhas vizinhas faziam comentários maldosos. Os meninos que brincavam na rua, riam. E alguns homens tiveram a curiosidade despertada. Mais tarde ela conseguiria uma grana com aquela curiosidade.
A rua inteira acompanhou a sua chegada. As velhas vizinhas faziam comentários maldosos. Os meninos que brincavam na rua, riam. E alguns homens tiveram a curiosidade despertada. Mais tarde ela conseguiria uma grana com aquela curiosidade.
Após o funeral, quando ela foi em um vestido preto
justíssimo, de corte italiano, seu tio Tobias a acompanhou até a casa que
ficava em uma esquina. Entortou um Velho Barreiro com gosto e iniciou uma
choradeira interminável. As lágrimas vieram acompanhadas de soluços e uma
revelação: - Guilherme, apesar de ninguém te aceitar, saiba que sua família te
ama – disse o tio. De nenhuma maneira aquilo a emocionou, ela estava mais
incomodada com a unha que tinha recém-quebrada. – Guilherme, na verdade, você
foi adotado – aquilo fez os seus olhos estralarem. – Pela Madonna fase Like a
Virgin! O que o senhor está falando? – indagou, perplexa. – Na verdade, você é
filho de um jogador de futebol de terceira divisão, que não pôde te assumir na época
e, por consequência do destino, sua verdadeira mãe acabou lhe trazendo para cá,
pois conhecia sua mãe adotiva. Ainda bebê, te pegaram para criar – confessou o
tio Tobias, entre goles e mais goles de canha. – Hoje em dia, a única coisa que
sei a respeito do seu pai, é que ele é uma travesti velha que vive pelas ruas
da Alemanha e atende pelo nome de Robertona.
