quarta-feira, 2 de maio de 2012

A Travesti do Menino Deus




Assim como muitas travestis, Guilhermina queria que seu corpo plastificado fosse natural e perfeito. Para alcançar o que conseguiu até então, ela deu duro na vida, mesmo às vezes estando mole. Ainda adolescente, se mandou para Berlim ganhar uma grana. Seu objetivo era ser operada. Órfã de mãe, abandonou seu pai, pedreiro batalhador de uma empreiteira de Pato Branco, e foi à capital da Alemanha na década de 1990 arrancar de alguns velhos arianos o que não estava conseguindo obter em plagas Sudoestinas. Depois de ficar muito tempo de joelhos, juntou o sagrado dinheiro e comprou passagem só de ida. Mesmo não sabendo alemão, não hesitou: - Se a Robertona se deu bem, e a minha bunda é maior, vou me dar bem também - pensava.

Passados três anos pelas ruas de Berlim, não só aprendeu a língua de Nietzsche como fez um belo pé de meia. Além de faturar com programas, era acompanhante de executivos liberais e se apresentava em uma casa noturna, dublando músicas da Ângela Maria. Chegou até a participar de um programa de TV estilo Ratinho. Não ficou famosa, mas tirou um bom proveito da exposição.
Certo dia, um telegrama ela recebeu. “Caro Guilherme, seu pai sofreu um acidente e faleceu. Volte o mais rápido possível para o Paraná”. O recado, curto e certeiro, escrito por seu tio, Tobias, gerou uma confusão sentimental: um misto de alívio com dor, mas também de consideração e amor, afinal, se tratava do progenitor. Lógico que ele nunca aceitou a escolha do filho, chegando até refutar o seu caminho. Mesmo assim, percebeu que sua jornada havia chegado ao fim. Era hora de encarar e enterrar o seu pai descentemente.

Dois dias depois embarcou rumo ao Brasil, carregando apenas uma mala com vestidos e sapatos. Algumas perucas também vieram. O resto, ela deixou para a Robertona, amiga dos momentos difíceis, dos alegres, das bebedeiras e confidente da cannabis russa que estava presente em boas noites.

Sempre sensata, apesar de transar muitas drogas, nunca se entregou a nenhuma. Seu lema era: “Eu, Christiane F., nunca! Eu quero o F só de fortuna”. É fato que não se tornou rica, mas conseguiu um dinheiro que lhe traria conforto. O Fernando Henrique tinha acabado de ganhar as eleições, depois de uma sacada genial com a alteração da moeda. O pai do Real, naquela época, estava com um respaldo incrível junto à população. Muito bem informada, Guilhermina viu ali uma oportunidade de, além de se despedir do seu pai, tirar proveito da situação econômica. “Travesti sim. Mas travesti burra jamais”, argumentava quando conversava com outras meninas pelas ruas de Berlim.

Ao chegar a Pato Branco, tinha que se dirigir ao IML para retirar o corpo do seu pai. O tio Tobias conseguiu negociar o impossível que esperassem o retorno dela para enterrá-lo. Antes de se dirigir ao local, Guilhermina foi até sua antiga casa. O velho quarto marrom estava desbotado e as paredes, de madeira, apresentavam nos cantos uma deterioração. O fogão à lenha da Atlas ainda estava lá, bem como, o retrato de sua mãe na moldura encardida colocada na sala. O bairro Menino Deus tinha mudado bastante. A rua, antes de pedra irregular, tinha sido asfaltada. 

A rua inteira acompanhou a sua chegada. As velhas vizinhas faziam comentários maldosos. Os meninos que brincavam na rua, riam. E alguns homens tiveram a curiosidade despertada. Mais tarde ela conseguiria uma grana com aquela curiosidade.


Após o funeral, quando ela foi em um vestido preto justíssimo, de corte italiano, seu tio Tobias a acompanhou até a casa que ficava em uma esquina. Entortou um Velho Barreiro com gosto e iniciou uma choradeira interminável. As lágrimas vieram acompanhadas de soluços e uma revelação: - Guilherme, apesar de ninguém te aceitar, saiba que sua família te ama – disse o tio. De nenhuma maneira aquilo a emocionou, ela estava mais incomodada com a unha que tinha recém-quebrada. – Guilherme, na verdade, você foi adotado – aquilo fez os seus olhos estralarem. – Pela Madonna fase Like a Virgin! O que o senhor está falando? – indagou, perplexa. – Na verdade, você é filho de um jogador de futebol de terceira divisão, que não pôde te assumir na época e, por consequência do destino, sua verdadeira mãe acabou lhe trazendo para cá, pois conhecia sua mãe adotiva. Ainda bebê, te pegaram para criar – confessou o tio Tobias, entre goles e mais goles de canha. – Hoje em dia, a única coisa que sei a respeito do seu pai, é que ele é uma travesti velha que vive pelas ruas da Alemanha e atende pelo nome de Robertona.