domingo, 25 de dezembro de 2011

Brega na veia!



Odair José, o repórter musical das classes minoritárias

Quando surgiu no mercado musical, foi rotulado de brega e invadiu os sonhos mais eróticos das empregadas domésticas. Odair José, a febre popular, teve que enfrentar duas ditaduras: a militar e a elite cultural. Duplamente atingido, sobreviveu a ambas.
Se o mundo viu surgir Cat Stevens, os brasileiros tiveram a sua versão nacional, mas com muito mais ousadia em criar crônicas que se tornaram hinos. Na década de 1970, quando todos pensavam que “Vou Tirar Você Desse Lugar” se tratava de uma inocente ode ao amor, os mais atentos perceberam que, na realidade, era uma dedicação exacerbada a uma prostituta. O narrador da história, com a paixonite aflorada, sem dó nem piedade confessava: “Eu vou tirar você desse lugar, eu vou levar você pra ficar comigo/ E não interessa o que os outros vão pensar”.
Pioneiro em injetar ousadia nas letras, falando abertamente de homossexualidade, garotas de programa, sexo e adultério, Odair José conseguia camuflar esses assuntos em baladas românticas. Quando se percebia, já era sucesso radiofônico. Os militares ficavam loucos. Ele chegou a ser preso e interrogado. Sempre se livrou e continuava a provocar, descrevendo personagens urbanos como um repórter musical.
“O repertório musical de Odair José – especialmente suas composições – é tributário de duas grandes linhagens da MPB: a primeira se localiza nos anos 1930, em Noel Rosa; a segunda, nos anos 1960, em Roberto Carlos. Deste último, a influência é mais óbvia e direta: o estilo melódico, o ritmo da balada romântica à qual Odair vem se dedicando ao longo da carreira”, disse certa vez o escritor Paulo César de Araújo, autor de “Eu Não Sou Cachorro, Não”, dedicado a outro expoente da classe, Waldick Soriano.
Além de despertar a fúria dos militares, o compositor ainda provocou a igreja católica ao idealizar uma ópera-rock de protesto religioso, centrado na figura de um Jesus Cristo mundano e atormentado pela sexualidade. A certa altura da peça, Jesus cantava, “eu queria ser John Lennon”, alusão à famosa frase do inglês que esbravejou: “os Beatles são mais famosos que Cristo”.
Como um Garrincha da música popular brasileira, Odair José denunciava o estigma de subtrabalho que envolvia o ofício das empregadas domésticas em “Deixa Essa Vergonha de Lado”, que abordava o preconceito social da trabalhadora namorar um rapaz de classe média. “Neste sentido, a sua música foi mais contestadora (e conscientizadora) do que aquela dirigida ao público intelectual. Duas décadas antes do Planet Hemp, Odair se declarou usuário em ‘Viagem’, balada-apologética, que foi enquadrada na legislação sobre entorpecentes. E, com a polêmica ‘Pare de Tomar a Pílula’ acabou por confrontar uma campanha de controle de natalidade, patrocinada pela ditadura, que produzia cartazes com a mensagem ‘tome a pílula com muito amor”, contou o escritor Paulo César.
Mesmo sendo considerado um letrista de segundo escalão pelas elites, longe de dividir um palco de importância com Chico Buarque ou Aldir Blanc, Odair José foi o herói da minoria, carregando nas costas a crítica e fazendo sucesso no Clube do Chacrinha e nas rádios AM do Brasil.

Tributo
O diretor da Allegro Discos, Sandro Rogério Lima Belo, idealizou um álbum tributo a Odair José, intitulado “Vou Tirar Você Desse Lugar”. Para isso, ele convidou algumas bandas e artistas do mainstream e do underground tupiniquim, que fizeram versões sensacionais das eternas músicas do compositor. “O objetivo desse projeto é o de questionar a imaginária e preconceituosa barreira que o separa da historiografia oficial da MPB. Nesta empreitada, contamos com artistas e bandas de diversas tendências que vêm demonstrar o seu apreço por um conjunto de obras que, passados tantos anos, não se tornou datado e é de uma qualidade inquestionável. Pois, a bem da verdade, como já disse Raul Seixas, muita gente gosta de ‘Besame Mucho’ e ‘Vou Tirar Você Desse Lugar’, mas tem vergonha de falar”, relata Sandro no encarte do CD.
O álbum inicia com a faixa título, defendida com primor pelo vocalista do Titãs, Paulo Miklos, que a transformou em um rock simples com direito a citação de Iggy Pop no final da canção. O disco ainda tem os mineiros do Pato Fu que ousaram em regravar o primeiro quase sucesso de Odair José, “Uma Lágrima”, repleta de delicadeza, ruídos eletrônicos e um inspiradíssimo solo de guitarra de John Ulhoa com timbre distorcido.
Quem se destaca no tributo é o cantor Zeca Baleiro, que assume o seu lado brega sem vergonha de ser feliz e capricha nos violões de “Eu, Você e a Praça”, título de uma breguice que causou arrepios em Bruno e Marrone. A banda Columbia também faz bonito em “Eu Queria Ser John Lennon”, com destaque para a voz de Fernanda Marques.
O projeto-tributo ao rei dos excluídos conta ainda com Suzana Flag, Mombojó, Mundo Livre S/A, Suíte Super Luxo, Shakemakers, Leela, Sufrágio, Picassos Falsos, Poléxia, Jumbo Elektro, Arthur de Faria e Seu Conjunto, Terminal Guadalupe, Volver e Los Pirata.



Leonardo Handa