Arram, fui eu quem escreveu
Quem admira ou estuda poesia sabe que ela não tem fronteiras. Os
sentimentos que o gênero desperta depende da entrega de cada um. Alguns se
permitem mais, inclusive, rabiscando suas primeiras frases.
Nada melhor do que escrever para imprimir desejos, anseios, vontades,
opiniões e devaneios. E como é bacana encontrar alguém, num balcão de bar,
despejando vogais, sílabas, palavras e rimas em um guardanapo. A cena por si só
é inundada de poesia. A luz amena, as mãos firmes, a caneta esferográfica e o
olhar quase estrábico. O copo canelado com cerveja até a metade. Metade vazia.
Metade cheia. O ponto de vista também é artista do momento.
Foi provavelmente em um cenário assim que Paulo Leminski cuspiu muitos
dos seus haicais. Munido de sua pena companheira, devia deslizar com ela por um
salão de assoalho perfeito. Lógico que às vezes ele mudava de pista, procurando
alguma repleta de irregularidades, só para não dançar conforme a música.
Reza a lenda que em uma dessas noites de baile inspirado (e de trago),
o poeta presenteou o professor aposentado de Biologia, Marcos Baldessar, com a
delicadeza voraz que lhe era abençoada. Os versos diziam: “A noite / Todos os gatos / São pardos / De dia / Mia!”. Esse
haicai ficou perdido por anos, até ser relembrado pelo professor da UTFPR de
Pato Branco, Fabiano Ostapiv.
Numa dessas viagens da vida, Fabiano, que é amigo de Marcos, pernoitou
no apartamento do colega de profissão, localizado em Curitiba. Na ocasião,
ficou fascinado com figuras, gravuras e poesias emolduradas nas paredes da
sala. Noite adentro, conversa afora, para a surpresa de Fabiano, o biólogo
revelou que vivia em contato com Leminski, num passado paranaense que somente
os sobrevividos da época conseguiriam descrever. “Nesse espírito de curiosidade
e lembranças, Marcos me disse que numa noite de bebedeira, o Leminski escreveu
uma poesia curta num guardanapo. Segundo o professor, o poeta produzia muito e
facilmente essas pérolas, distribuindo generosamente aos amigos”, contou
Fabiano.
Nunca ninguém foi atrás de resgatá-la, permanecendo inédita em
publicações até hoje. Fabiano, com isso na cabeça, durante a Semana Literária
do Sesc de Pato Branco, aproveitou para falar do causo com Estrela Leminski,
cantora e filha do homem, que se apresentou no evento. Num primeiro momento,
ela se mostrou interessada em realizar essa busca, mas que seria um tanto
difícil e penoso, já que o tal guardanapo estaria extraviado ou com o
ex-jornalista da Gazeta do Povo, Ricardo Rodriguez, que seria testemunha da
concepção leminskiana.
Durante a Semana do Sesc, esse que escreve a você (as pessoas ainda
leem textos assim?), estava trabalhando solitariamente quando Fabiano chegou
com essa história. Não soube dizer ao certo o que poderia fazer para ajuda-lo
nesse resgate, mas me comprometi a escrever a respeito, com um único objetivo:
que o haicai inédito chegasse a conhecimento de alguém. Ainda não tenho o
depoimento do professor Marcos, algo que, em breve, será coletado. E, como
admirador agudo do bigodudo, não há como deixar um relato desse se afogar no
infinito mar da poesia.
O mais inusitado de tudo é que o episódio, acontecido entre 1982 e
1985, veio quicando até Pato Branco, através de Fabiano, que estava guardando e
analisando esse episódio literário da melhor forma, pensando em como poderia
apresentar isso à família Leminski. No entanto, a única prova real ficou na
mente e na verdade daquela noite lavada em um balcão de bar, entre pessoas que
sabiam desde então que a poesia não tinha fronteiras.
